Compro, logo existo!


Por Sávio Oliveira

O cenário era de catástrofe. Montanhas de calçados jogados ao chão, rejeitados por não corresponderem as expectativas de centenas de pés exigentes, vitrines vazias saqueadas por extasiados clientes e prateleiras caídas devido à fúria revelavam a grandeza do caos. Talvez se todos os desastres naturais provocados pelo aquecimento do planeta convergissem, não eram capazes de causar os estragos que a primeira liquidação do ano causara àquela loja.
Porém ainda restavam humanos no local. Como hienas encurvadas buscando restos de um farto banquete, ensandecidas na esperança de encontrar um tênis em oferta que sacie sua fome de sonhos. Enquanto os filhotes, geralmente usados nas buscas mais ágeis e furtivas, chegavam a lugares inóspitos como debaixo das prateleiras, a fim de avistar a percata do herói favorito, armados de saltos “ponta de agulha” para eventuais batalhas com filhotes rivais. Outros, munidos de cabides e cruzetas, batucavam em caixas de sapato gerando sons rudimentares aliados a longos e estridentes berros resultando em represálias por parte dos bandos próximos.
Neste momento não havia qualquer hierarquia ou distinção entre as espécies. Pomposas tigresas disputavam vorazmente o mesmo pedaço de couro com míseras mucuras. Pavões playboys se esgueiravam abruptamente com vira-latas da periferia na tentativa de agarrar os últimos pares de status, que dizer sapatos*.
Os vendedores eram altamente requisitados em semana de liquidação. Por isso abrigavam-se constantemente nos depósitos para localizar calçados restantes no estoque. Enquanto os clientes aguardavam ansiosos como quem aguarda a chegada de um filho. Eis que surge, como um médico exausto após o trabalho pós-parto, o vendedor trazendo nas mãos apenas os dedos e no rosto os dentes amarelados de onde cai “Não temos mais o tamanho 39 não, senhor” desolando mais um cliente, que se retira cabisbaixo.
Após a tarde e início da noite em batalhas, os vitoriosos exibem seus troféus nas gigantescas filas da loja das fadas. Porém ainda não é hora para comemorações, uma fêmea vasculha a bolsa olhando todos os bolsos desejando deparar-se com um trocado esquecido, a proximidade do caixa também revela um breve desespero que é cessado pelo alívio do encontro do cartão de crédito. Pedir fiado ficou sofisticado.
O desespero retorna percorrendo friamente a região da nuca. O cartão não “passava”! A fêmea pede à caixa que repita a operação. Ela nunca havia percebido o quão alto batia seu coração, imaginava que a qualquer momento seu seio saltaria do sutiã. A possibilidade de deixar todos aqueles sapatos ali, estáticos aterrorizava sua mente a cada três segundos. Todos os planos com as novas sandálias pareciam desmoronar. Não podia ser verdade. Naquele instante avançaria com todo ódio em direção aquele caixa. Mas ouvia um zunido tão intenso que não conseguia mais pensar em nada até que o mundo se resumiu em um som. O da máquina validando o cartão. Como esse bipe era prazeroso, se sentiu tão viva naquele minuto, toda tensão aliviada por aquele som hedônico. Queria mais, desejava a volúpia que o marido nunca lhe proporcionou em todos aqueles anos.

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